Político que não teme desafiar nem mesmo a ciência, Jair Bolsonaro tomou a iniciativa de revelar que não é bom em previsões. No sábado, entre uma aglomeração e outra, postou no Twitter versão editada de trechos de uma entrevista por ele concedida no último dia 25 de março diante do Palácio da Alvorada.
O vídeo, sonorizado com uma música que ressaltava o tom apocalíptico das declarações, vinha acompanhado de uma frase na linha do eu-avisei: “Há 2 semanas falei sobre o que poderia acontecer no Brasil, caso se preocupassem apenas com um problema”, escreveu o presidente.
Ao longo de 2 minutos e 7 segundos, Bolsonaro critica medidas de isolamento (“além da normalidade”) decretadas por governadores e prefeitos, teme o colapso da economia e prevê o caos para “daqui a poucos dias”.
Entre os sintomas do descontrole que nos aguardava ali na esquina, o presidente citou falta de dinheiro para o pagamento de servidores públicos, desemprego em massa, paralisação das atividades do homem do campo, greve dos caminhoneiros, desabastecimento (ele falou em “abastecimento já começa a se fazer presente”, mas, pelo contexto, referia-se a problemas no setor).
Passados 17 dias entre a entrevista e a publicação de seu resumo, o caos não se instalou. Houve a esperada queda brutal na atividade econômica e o desemprego – que já ocorre em algumas áreas – ainda não foi oficialmente medido e tende, pelo menos nesses primeiros momentos, a ser parcialmente contido por decisões de empresários e por medidas tomadas pelo próprio governo.
Mas, ao contrário do que previu Bolsonaro, ainda não houve greve de caminhoneiros, o setor rural continua produtivo e a única notícia sobre desabastecimento foi publicada em sua conta do Twitter – era falsa, como ele acabaria admitindo. Ao postar o vídeo no Sábado de Aleluia, ele, na prática, admitiu que que errara. Afinal, na entrevista, dissera que o caos ocorreria em “poucos dias”.
Nesse intervalo, o que aconteceu mesmo foi uma grande evolução no número de vítimas da “gripezinha” – no mesmo sábado, o sistema de saúde em Manaus entrou em colapso e o Ministério da Saúde contabilizou 1.124 mortos no país. O número ultrapassa de longe outra previsão de Bolsonaro, a de que a epidemia do novo coronavírus mataria no Brasil menos que o H1N1 no ano passado (foram 796 casos).
É óbvio que não escapamos do risco de passar pelas mazelas listadas pelo presidente, o problema é que, para evitá-las, ele sugere que façamos o que todo o mundo diz que não devemos fazer – voltar às ruas de maneira massiva, o que contribuiria para o aumento dos casos da doença, lotaria de vez os hospitais e impactaria ainda mais a atividade produtiva.
Ao nos isolarmos, colaboramos para um melhor atendimento das equipes de saúde e damos mais tempo para que cientistas encontrem uma vacina ou um tratamento eficiente contra a doença.
Diante da pandemia, não existe solução indolor, mas as possíveis, que buscam preservar o mais importante, as nossas vidas e, ao mesmo tempo, apontar para a diminuição do impacto nas atividades produtivas.
Cabe aos governantes encarar o problema e buscar saídas (como, vale frisar, diferentes áreas da administração federal têm feito). Ao insistir em sua maneira de enfrentar a situação, Bolsonaro colabora para o pânico, estimula a divisão na sociedade e admite uma incapacidade de lidar com o problema – parece não acreditar nas providências que vêm sendo tomadas por seu próprio governo.
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