A pandemia é maior que Sérgio Moro ou Jair Bolsonaro. O novo coronavírus nem quer saber dos dois. Continua a matar milhares de brasileiros em silêncio, à revelia de disputas políticas, indiferente a orientação ideológica. Mesmo assim, o embate entre o presidente e o ex-ministro interfere no combate ao vírus. Pois é a política que determinará como os seres humanos se sairão desse luta.
Desde o início, a postura de Bolsonaro mistura ignorância e autoritarismo. Não há como ficar indiferente a um presidente que, diante milhares de mortos, solta um “e daí?”, defende diante das câmaras os agressores de um repórter fotográfico e manda uma jornalista “calar a boca”. São atitudes inaceitáveis vindas de qualquer um, que dizer de quem ocupa a cadeira presidencial?
A insistência em sair às ruas e incentivar aglomerações, tossindo sem máscara e distribuindo apertos de mão, o incentivo a inúmeras manifestações contra a democracia e o desprezo pela ciência já surtiram efeito. Nos municípios brasileiros, há uma associação estatística inequívoca entre o desrespeito ao isolamento social e o índice de votação em Bolsonaro nas eleições de 2018.
Não é um fenômeno exclusivamente brasileiro. Num estudo preliminar, disponível do repositório PsyArXiv, pesquisadores canadenses verificaram que a polarização política está presente também nas atitudes diante da Covid-19 nos Estados Unidos e no Canadá. O fator mais relacionado à visão negacionista é outro, porém: a falta de “sofisticação cognitiva”, definida como deficiência analítica, carência de conhecimento básico
Será um objeto interminável de pesquisa, ao longo e ao cabo da pandemia, verificar se o novo coronavírus terá matado mais gente desta ou daquela linha ideológica. É esperado, naturalmente, que atinja mais aqueles que desrespeitarem as regras de isolamento social. Mas essa é uma investigação para o futuro. No presente, têm prioridade a investigação das acusações de Moro e os prazos determinados pelo ministro Celso de Mello, decano do Supremo Tribunal Federal (STF).
No depoimento de sábado, divulgado ontem na íntegra, Moro elaborou detalhes do que já dissera na entrevista coletiva logo depois de sua saída: acusou Bolsonaro de interferir na nomeação da direção fluminense da Polícia Federal. Em tese, embora Moro não tenha dito isso, foi um movimento para proteger o filho Flávio e aliados ligados às milícias cariocas, todos alvos de inquéritos.
A tentativa de nomear um pau mandado em tal circunstância configura o uso privado de uma instituição pública. É um crime de responsabilidade óbvio – como se já não os houvesse de sobra –, que poderia ser motivo para impeachment. Continua improvável, contudo, um processo de impeachment em plena pandemia.
Do ponto de vista prático, apesar das oito horas de depoimento, Moro não apresentou nenhuma prova mais contundente além das que já havia entregado ao Jornal Nacional no dia da saída do ministério. Novas mensagens vieram à tona, corroborando a acusação de tentativa de interferência. A autenticidade delas foi confirmada pelo próprio Bolsonaro. Mas nenhuma é, por si só, suficiente para derrubá-lo. A gravação das reuniões citadas, solicitadas pelo ministro Celso de Mello, mantém o suspense. O desgaste continuará.
Bolsonaro precisa de inimigos para manter o discurso polarizado e inflamar os acólitos que o sustentam no poder. “Moro traidor” é o ingrediente ideal para acrescentar ao caldeirão onde já pôs para ferver petistas, tucanos, ministros do Supremo, deputados e senadores (menos o “Centrão”…), imprensa, academia, a esquerda, o “globalismo” ou qualquer outra fantasia das mentes sem muita “sofisticação cognitiva”.
Diretor de redação da revista Época por 9 anos, tem um olhar único sobre o noticiário. Vai ajudar você a entender melhor o Brasil e o mundo. Sem provincianismo
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