Se não fosse pelo paletó e o nome conhecido mundo afora, talvez o bilionário Carlos Wizard Martins, de 62 anos, passasse despercebido ao caminhar pelo Posto de Triagem da operação Acolhida, principal estrutura destinada a assistir venezuelanos recém-chegados a Boa Vista (RR). É sua rotina há nove meses.
Missionário mórmon da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, que frequenta desde a juventude, ele foi designado junto com a esposa, Vânia Martins, 60, a participar de ação humanitária no estado. Mudou-se em agosto passado e se divide entre constantes viagens a São Paulo, para cuidar dos negócios pessoais, e Brasília, onde dialoga com o governo federal sobre a migração venezuelana.
O principal trabalho que faz em Roraima é relacionado à interiorização de venezuelanos. Ele encabeça um grupo de voluntários que atua na transferência de imigrantes recém-chegados a outras partes do país e também articula empregos nas cidades de destino. Desde abril de 2018, seu grupo já levou 25% do total de venezuelanos interiorizados pela operação Acolhida, criada em fevereiro de 2018 para lidar com o fluxo migratório de venezuelanos em Roraima.
As viagens são feitas em voos comerciais a custo zero desde o ano passado, graças a um acordo que ele próprio costurou com as companhias Latam, Azul e Gol que prevê uso de assentos desocupados. No mês passado, 525 venezuelanos viajaram dessa forma.
“Diariamente levamos as pessoas ao aeroporto. Temos uma equipe de apoio e às vezes levamos pessoas até no meu carro”, explica o bilionário, que já visitou 45 países, mas nunca esteve na Venezuela e pela primeira vez atua diretamente no acolhimento de refugiados.
“Minha rotina é simples. Nós recebemos as famílias, cadastramos, identificamos pessoas em outras partes do país que possam acolhê-las, trabalhamos com as empresas aéreas e acompanhamos essas famílias até o aeroporto. Enquanto a família não chega lá no seu destino, a gente se preocupa com ela.”
Ele explica que o objetivo do trabalho que lidera é mais do que assistencialismo ou tutela e quer ampliá-lo com ajuda de mais empresários e líderes religiosos do Brasil. Na semana passada, se reuniu com a ministra Damares Alves, da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, para dialogar sobre a criação de um comitê inter-religioso de acolhimento aos refugiados.
“De nada adianta eu tirar um imigrante da rua aqui em Roraima e deixá-lo na rua em São Paulo. Eu não vou resolver o problema dele dessa forma. Então, felizmente, temos conseguido, dentro de 30 a 60 dias que eles chegam aos locais, que consigam trabalho com carteira assinada e todos os benefícios de um trabalhador”, afirma Wizard.
Ele explica que os imigrantes não saem de Roraima com emprego garantido, mas chegam às diversas cidades e são encaminhados ao mercado de trabalho com o apoio da comunidade local da igreja. Entre os que já foram levados, há quem conseguiu trabalho como mecânico, técnico em refrigeração, professor de espanhol e marceneiro. Alguns trabalham até mesmo nas empresas de Wizard.
“Não queremos enviar alguém para ficar dependente. Todo nosso trabalho está baseado na autossuficiência. Nós queremos dar condições para as pessoas caminharem com suas próprias pernas.”
Os números da interiorização
A operação Acolhida foi a resposta do Governo Federal ao intenso e anormal fluxo migratório vindo da Venezuela. Dessa operação, fazem parte instituições governamentais, como as Forças Armadas, além de agências da Organização das Nações Unidas, organizações não governamentais e membros da sociedade civil.
O grupo liderado pelo empresário Carlos Wizard é um dos integrantes da operação e já foi responsável por encaminhar 2.443 pessoas para estados como Santa Catarina, Paraná, São Paulo e Minas Gerais, segundo o coronel Alexandre Carvalhaes, chefe da Interiorização da Força Tarefa Logística Humanitária, que executa a operação Acolhida.
Fora as interiorizações organizadas pelo bilionário, outras 7.304 pessoas foram levadas a outros estados, inclusive em voos da Força Aérea Brasileira (FAB), que começaram a transportar venezuelanos a outras partes do Brasil também a partir de abril.
Na avaliação do coronel Carvalhaes, a interiorização rápida e organizada dos imigrantes é a única chave para desafogar Roraima em meio a um fluxo diário de 500 pessoas entrando diariamente pela fronteira em Pacaraima. Hoje se estima que 10 mil venezuelanos estejam em situação de rua no estado, ainda que os 13 abrigos da operação Acolhida recebam mais de 6,5 mil pessoas.
“Se a interiorização não anda, é colapso para Roraima. Isso vai se refletir nos atendimentos de saúde, nas escolas públicas, numa série de serviços públicos que o estado não tem preparo para absorver. Nós temos que diluir esses imigrantes pelo Brasil e não mantê-los concentrados aqui como estão hoje. E a forma de fazer isso é com a interiorização”, explica o coronel. “Sem o trabalho do Carlos Wizard, a operação Acolhida sofreria um baque, porque ele está encabeçando um movimento da sociedade civil que é único.”
Conforme a ONU, desde 2015 cerca de 3,7 milhões de pessoas deixaram a Venezuela e merecem proteção como refugiados em decorrência da crise política, econômica e social do país, que enfrenta inflação alta e desabastecimento. O Brasil é o sexto país que mais recebe os venezuelanos.
“Nós temos pobres no Brasil? Com certeza temos. Em todas as cidades nós temos. Mas um refugiado ele só tem a roupa do corpo e mais nada. Toda a estrutura de apoio que o governo federal, estadual, municipal dá ao nosso carente não pode ser comparada àquele que acabou de chegar aqui na fronteira, com a roupa do corpo e às vezes com um bebezinho no colo”, diz Wizard.
‘Lição de humildade’
Presidente do grupo Sforza, um conglomerado que tem mais de 20 empresas, entre elas a Mundo Verde, Pizza Hut, KFC, Taco Bell e Wise Up, o bilionário aparece na edição de 2018 da lista da “Forbes” com uma fortuna de R$ 2,4 bilhões.
Há seis anos ele vendeu, por quase R$ 2 bilhões, o grupo Multi, que incluía as escolas de inglês Wizard e a rede profissionalizante Microlins. Foi a maior aquisição em educação já feita no país até então.
Com toda essa fortuna, o bilionário conhecido no mundo executivo como “mago dos negócios” garante que tentou passar despercebido em Roraima, o estado com o menor PIB do Brasil, e conseguiu fazê-lo durante vários meses, mas com as constantes idas a Brasília acabou sendo “descoberto”.
Ainda assim, diz que é um desconhecido entre aqueles que ajuda e afirma que lidando com refugiados se surpreende e se emociona todos os dias.
“Todo dia é uma lição, especialmente de humildade. Às vezes vou até o aeroporto, eles pedem para a família colocar a bagagem na balança e colocam um saco plástico com 5 kg de peso. É uma vida toda dentro de um saco plástico, e a gente tem tanto. Uma vez minha esposa preparou um lanchinho para um passageiro e tinha uma maçã. A pessoa se emocionou ao ver a maçã e contou que há três anos não sabia o que era comer uma maçã. Você pode comer uma, duas, uma caixa de maçã, mas para um refugiado comer uma maçã tem um significado diferente.”
O bilionário conta que já esteve na fronteira, em Pacaraima, e tomou conhecimento da situação do estado em meio à crise provocada pela chegada de milhares de pessoas. Ele e a esposa ficam na missão humanitária em Roraima até julho do ano que vem.
“Cada dia é uma história diferente. Tem uma que me marcou muito. Um imigrante de 40 anos chegou aqui com uma menininha de colo, de pouco mais de um ano. Ele perdeu a esposa atropelada na Venezuela e veio com a criança. O detalhe é que ele é deficiente visual. Você imagina ser uma pessoa cega, sem visão, carregando uma criancinha no colo? Ele foi, então, para um abrigo aqui, e o maior medo dele era que alguém levasse a menina embora. Minha esposa, quando soube, perguntou se ele não queria que a filha fosse adotada, e ele disse que já havia perdido a esposa, que a neném era tudo o que ele tinha e iria criá-la. Minha esposa conseguiu contato de uma instituição na cidade de Jataí [GO], que tem como fundador um deficiente visual que acolhe essas pessoas. Eles concordaram em recebê-los e, para nossa maior satisfação e ao mesmo tempo emoção, descobrimos que a instituição ficava a uma quadra da Igreja de Jesus Cristo lá na cidade.”
Para capitanear mais ajuda e alavancar a transferência de venezuelanos de Roraima para outros estados onde haja emprego, a rede de voluntários que ele lidera mantém uma conta no WhatsApp.
“Se você for hoje na maternidade vai ver mais mães venezuelanas dando à luz do que brasileiras. Se for ao Hospital Geral de Roraima vai ver que os corredores estão cheios de venezuelanos. As escolas já não têm mais vagas para pôr crianças. Então, a solução não está em Roraima. A solução está compartilhada em vários estados do Brasil.”
“Nós somos 200 milhões de habitantes no Brasil, será que não conseguimos dar conta de 20 mil refugiados? Claro que conseguimos. Se cada um fizer sua pequena contribuição, vai significar muito para aquele que não tem nada.”
G1 Economia
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