Neste sábado (9), às 11h, em São Paulo, na Livraria Tapera Taperá (no centro), os jornalistas mineiros Lucas Ragazzi e Murilo Rocha lançam o Livro reportagem de Brumadinho: a engenharia de um crime (Editora Letramento). O livro é baseado na investigação da Polícia Federal sobre o rompimento da barragem da Mina do Córrego do Feijão em Brumadinho (MG), ocorrido em 25 de janeiro, que indiciou sete funcionários da mineradora Vale e seis da consultoria alemã TÜV SÜD por crime de falsidade ideológica e uso de documentos falsos.
O rompimento da barragem causou inundação de lama e rejeitos de minério de ferro que resultou na morte de 252 pessoas. Dezoito pessoas continuam desaparecidas nove meses após o acidente. Essa semana, a Agência Nacional de Mineração (ANM) divulgou relatório técnico assinalando que a tragédia poderia ter sido evitada se a Vale tivesse prestado informações corretas ao Sistema de Integrado de Gestão de Segurança de Barragens de Mineração (SIGBM).
Um dos autores do livro, Murilo Rocha falou com a Agência Brasil e também aponta para a negligência da Vale: “era uma prática corriqueira”. A seguir principais trecho da entrevista com jornalista.
Agência Brasil: Foi uma tragédia, foi um acidente ou foi um crime?
Murilo Rocha: Foi uma tragédia provavelmente motivada por alguns atos tipificados pela Polícia Federal como criminosos. A PF já indiciou 13 pessoas por falsidade ideológica e uso de documentos falsos para atestar a estabilidade da barragem. Ou seja, não havia como atestar segurança da barragem, no entanto, foi atestado isso.
Agência Brasil: O livro tem como subtítulo “a engenharia de um crime”, o que pode transmitir a ideia de que foi urdido e até racionalizado na escolha de parâmetros de segurança. Isso é comum em avaliação de obra e de risco de empreendimento?
Rocha: Eu não posso afirmar que é comum. O que a gente viu, em documentos apreendidos pela polícia e por outros órgãos, é que era uma prática corriqueira da Vale. Eles tinham documentos internos que demonstravam que pelo menos dez barragens estavam acima do limite aceitável. Isso está escrito, mas não era tornado público. Para a sociedade, eles vendiam que estava tudo bem e tranquilo. Quando a gente usa ‘engenharia de um crime’, a gente quer mostrar a anatomia de um crime e dissecar como isso ocorreu, mostrando que eles tinham conhecimento e foram discutindo essa situação ao longo de pelo menos um ano e três meses. Os problemas eram discutidos tanto por engenheiros da Vale quanto por auditores da consultoria alemã TÜV SÜD.
Agência Brasil: Qual era a dificuldade da Vale em acatar as recomendações ou observar os alertas, considerando que duas consultorias estavam assinalando problemas no cálculo dos fatores de segurança. Por que a Vale não viu esse sinal amarelo e não tomou providência? Era muito caro cuidar disso? Valia a pena correr o risco?
Rocha: Essa pergunta intriga e revolta todo mundo. A Vale é uma das três maiores mineradoras do planeta, dinheiro não é problema. Mas, enfim, creio que pesou a questão do lucro porque deveriam ter de paralisar as atividades da mina para retirar o centro administrativo, fazer uma obra maior na barragem, como um dos engenheiros da TÜV SÜD cita em um e-mail. Ele fala que ‘se a vale levar ao pé da letra [as recomendações] terá de paralisar as atividades’. Ninguém deu um grito ali porque envolvia custos e lucro. Essa é uma pergunta que a Vale deveria responder, mas ainda não respondeu. Responder por que não tomaram uma providência básica como retirar o centro-administrativo do pé da barragem. A maioria das vítimas estavam a um quilômetro e meio da barragem, foram atingidos em 34 segundos.
Agência Brasil: Parece uma noção básica não manter nenhuma estrutura debaixo de uma barragem…
Rocha: Pois é. Nós leigos, jornalistas e outras pessoas, os deputados da CPI da Assembleia Legislativa [de Minas Gerais] ficamos todos intrigados: por que é que não se tirou esse centro administrativo dali? Temos que lembrar que já havia ocorrido [o acidente de] Mariana, com o rompimento da barragem de Fundão, apenas há três anos, não era uma coisa inédita, já tinha acendido o sinal vermelho para esse risco. Mesmo assim foi desconsiderado. Funcionários relatavam que a barragem não tinha uma condição boa e mesmo assim foi mantido esse centro administrativo no pé da barragem e a consequência foi trágica. Foram atingidos pela lama [que desceu] a mais de 100 km/h. O delegado da Polícia Federal Luiz Augusto [Pessoa Nogueira, responsável pelo inquérito,] fala que ‘o rompimento da barragem talvez não pudesse ser evitado, mas a tragédia humana com certeza poderia ter sido evitada’.
Agência Brasil: Como a Vale conseguiu ter laudos da consultoria independente relativizando os riscos da barragem?
Rocha: Isso tem duas pontas. De um lado, as empresas que tinham contrato com a Vale. Elas temiam que se não aprovassem [a conformidade da] barragem perderiam esses contratos. Isso está relatado em e-mail. Um dos funcionários da TÜV SÜD fala em uma mensagem que ‘a vale vai nos jogar contra a parede’, vai fazer chantagem porque tinha outro contrato em jogo. Junto as auditoras, a Vale conseguia [os laudos] porque se o pessoal não aprovasse ela trocava de empresa, como fez anteriormente. A outra ponta dessa história é o Poder Público. Por que não viu que esses dados estavam errados? Aí vem a questão da precarização, da omissão e da falta de estrutura dos órgãos de fiscalização, tanto estadual e federal. São apenas carimbadores, não fiscalizavam para valer. Se fiscalizassem teriam descoberto esses problemas. Para ter ideia, quando rompeu a barragem em Mariana, em 2015, o extinto Departamento Nacional de Produção Mineral tinha cinco fiscais em Minas Gerais para fiscalizar 400 barragens espalhadas por todo estado. Essa realidade não mudou muito.
Agência Brasil: Precisa de mais gente e de mais recursos para fazer a fiscalização?
Rocha: Sem dúvida. Tanto no governo estadual, na Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (Semad) e na Fundação Estadual do Meio Ambiente (FEAM), [quanto no] governo federal, hoje através da Agência Nacional de Mineração [ANM]. Na prática é como as próprias empresas se regulassem.
Agência Brasil:Tragédias como essa repercutem na produtividade, rentabilidade e sustentabilidade das empresas?
Rocha: Sem dúvida. Apesar da Vale estar lucrando nesse momento, em grande parte por causa do complexo de minério de ferro lá no Pará, a imagem dela está manchada. Está sendo processada no exterior por fundos de pensão e por grandes grupos acionistas. Ela está tendo prejuízos, está com várias barragens paralisadas aqui em Minas Gerais. A imagem está desgastada. Convém lembrar que no caso da barragem em Mariana, da Samarco, a Vale é uma das controladoras. Agora com outra tragédia com tantos mortos, irreparável, o preço é muito caro.
Agência Brasil: Não teve lição aprendida de Mariana?
Rocha: Não. Isso fica claro. Quando o [engenheiro] Fábio Schwartzman assumiu a presidência da Vale em 2017, ele criou internamente um slogan: ‘Mariana nunca mais’, mas aconteceu outro acidente em proporções muito maiores em número de mortes.
Agência Brasil:E Brumadinho? Deixou lições aprendidas?
Rocha: Espero que sim. Depois do rompimento da barragem, a Vale e outras mineradoras começaram a suspender as declarações de condição de estabilidade e [passaram a] declarar situação de emergência em outras barragens. Ou seja, elas mesmas não estão confiando naquilo que atestaram no passado recente. Houve mudança na legislação federal com a proibição desse tipo de barragem. As normas são boas, me dizem os especialistas. O problema é a prática.
O que diz a Vale
Na reportagem Tragédia de Brumadinho poderia ter sido evitada, segundo ANM, a Vale diz, por meio de nota, que “todas as informações disponíveis sobre o histórico do estado de conservação da barragem foram fornecidas às autoridades que apuram o caso”; reforça que “aguardará a conclusão pericial, técnica e científica sobre as causas da ruptura da barragem; e promete que “continuará colaborando plenamente com as investigações, assim como prestando total apoio aos atingidos.”
Na semana passada, a ANM finalizou parecer técnico sobre o desastre onde aponta “omissões” da Vale, “inconsistências” e “discrepâncias” de informações que deveriam ter sido reportadas ao Sistema de Integrado de Gestão de Segurança de Barragens de Mineração (SIGBM).
Relembre o caso
No dia 25 de janeiro de 2019, a barragem de rejeitos de minério da Mina do Córrego do Feijão, em Brumadinho (MG), administrada pela empresa Vale se rompeu. O acidente resultou em um dos maiores desastres ambientais no Brasil. A tragédia provocou 252 mortes. Dezoito pessoas continuam desaparecidas.
A Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Câmara dos Deputados que investiga a tragédia em Brumadinho (MG) aprovou o indiciamento da mineradora Vale, da companhia alemã Tüv Süd e de mais 22 pessoas das duas empresas por homicídio doloso, lesão corporal dolosa e poluição ambiental por rejeitos minerais com sérios danos à saúde humana e ao meio ambiente, além de destruição de área florestal considerada de preservação permanente.
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