O Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações prepara um novo marco regulatório da radiodifusão. A proposta consta do Orçamento da União do próximo ano. Para implementá-la, o ministério reservou R$ 5 milhões para gastar em estudos e consultorias, entre outras despesas.
O novo marco legal foi incluído em uma cartilha obtida pela reportagem, que foi enviada a parlamentares para que possam apresentar emendas ao projeto. Cada emenda poderia chegar a R$ 200 mil.
A ideia do governo é endurecer as regras para outorga e renovação de rádios e emissoras de TV, seguindo o pedido do presidente Jair Bolsonaro.
Esse plano está na mesa do secretário de Radiodifusão do ministério, o coronel reformado Elifas Gurgel do Amaral, mas ainda não foi tratado pela cúpula do governo.
Elifas, que comandou a Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações) no governo da ex-presidente Dilma Rousseff (PT), quer dificultar as renovações exigindo mais documentos das emissoras.
Segundo pessoas que acompanham as conversas, a ideia é exigir que as empresas paguem suas dívidas antecipadamente para a renovação das outorgas, mesmo que os débitos tenham sido parcelados no passado. Isso criaria empecilhos para as emissoras, pois boa parte delas tem dívidas fiscais parceladas com a União.
Hoje elas podem emitir uma certidão de regularidade fiscal com a Receita Federal -uma das exigências legais para a obtenção de uma outorga ou renovação.
Recentemente, Bolsonaro ameaçou a Globo e as emissoras com licenças vincendas, sinalizando que poderia haver problemas de renovação se estivessem devendo algo. Disse ainda que o processo teria de ser “limpo”, uma referência às exigências legais.
O presidente chegou a dizer que não renovaria as licenças como retaliação a uma reportagem divulgada pela TV Globo, maior emissora do país.
A reação veio depois que o Jornal Nacional revelou que o nome de Bolsonaro foi citado no depoimento de um porteiro do condomínio onde ele tem casa, no Rio de Janeiro, durante as investigações sobre a morte da vereadora Marielle Franco (PSOL).
Dias depois, o funcionário recuou e disse que errou ao citar o nome do presidente.
Após a reportagem da Globo, Bolsonaro publicou um vídeo em que chamou de “patifaria” a cobertura jornalística da emissora. “Vocês vão renovar a concessão em 2022. Não vou persegui-los, mas o processo vai estar limpo. Se o processo não estiver limpo, legal, não tem renovação da concessão de vocês, e de TV nenhuma. Vocês apostaram em me derrubar no primeiro ano e não conseguiram”, disse.
No Brasil, não cabe ao presidente decidir sobre renovações de concessões de rádio e TV. A Constituição delegou essa função ao Congresso, para evitar abusos como o que ocorreu na Venezuela.
Em 2006, o então presidente do país, Hugo Chávez, decidiu não renovar a concessão da Radio Caracas Televisión (RCTV) por não ter transmitido manifestações de rua em seu favor durante a tentativa de golpe de Estado contra ele, em 2002.
Para interferir no processo de renovação das emissoras, Bolsonaro não terá outra saída a não ser conseguir o apoio de pelo menos dois quintos da Câmara (205) e do Senado (32). A votação é nominal.
Atualmente, o presidente não possui base de apoio no Congresso. Além disso, boa parte dos congressistas tem emissoras de rádio e TV, direta ou indiretamente. Algumas retransmitem a própria Globo. Outras, principalmente SBT e Record.
Apesar das mudanças em curso para dificultar o processo de renovação, não está na mira do ministério uma PEC (Proposta de emenda à Constituição) para retirar do Congresso o poder de decisão sobre outorgas e renovações de rádios e TVs, ainda segundo quem participa das conversas no governo.
A Globo detém cinco concessões, uma para cada geradora localizada nas principais praças (São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Brasília e Recife). Elas vencem em outubro de 2022.
Bandeirantes e Record também terão renovações em 2022; SBT e RedeTV!, em abril de 2023.
A Constituição garante a renovação das concessões como direito às emissoras. Por isso, não há concorrência pelos canais. As renovações ocorrem a cada 15 anos e, para dar início ao processo, as emissoras precisam enviar ao ministério uma série de documentos até 12 meses antes do vencimento do prazo.
Um deles é o certificado de regularidade fiscal, emitido pela Receita. Dívidas e pendências tributárias, inscritas na Dívida Ativa da União ou ainda em fase de discussão no Fisco, não impedem a obtenção desse atestado.
É justamente isso que o ministério pretende modificar. A ideia é que todas as pendências sejam quitadas, proposta que ainda não foi discutida por ministros e pelo Palácio do Planalto.
Pelas regras vigentes, o ministério pode acatar uma determinação de Bolsonaro e, no desfecho do processo, recomendar pela renovação ou não.
No caso de não renovação, é obrigado a demonstrar uma infração grave, uma desvirtuação da concessão, como afirmam técnicos do ministério e advogados.
Não bastaria, por exemplo, considerar que, em uma novela, ou até mesmo no noticiário, a emissora defendeu propostas esquerdistas ou princípios contra a família, a moral e os bons costumes.
Seria preciso comprovar que a emissora usou a concessão para impor uma posição política, algo proibido e impossível de provar, segundo os especialistas.
Falhas técnicas persistentes também seriam motivo para uma não renovação. No entanto, as maiores emissoras seguem os padrões técnicos impostos pelo ministério.
Não há problemas graves verificados pela Secretaria de Radiodifusão, do ministério, nem pela Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações), que faz as fiscalizações das estações.
Outra mudança de impacto prevista na proposta do novo marco é a integração dos serviços de radiodifusão com os de telecomunicação. A proposta, segundo o ministério na cartilha remetida a parlamentares, é diminuir “as assimetrias regulatórias existentes”.
O que se pretende, nesse caso, é definir as transmissões de conteúdos televisivos pela internet como um serviço de telecomunicações. Hoje, não existe regulação sobre a internet. Com o novo marco, vídeos veiculados por streaming ou aplicativos de canais, como HBO ou Fox, seriam tratados como TV e não mais como serviço de internet.
Recentemente, essa discussão chegou à Justiça depois que a operadora Claro reclamou na Anatel que a veiculação do canal Fox pela internet (aplicativo) deveria contar com uma tele por trás para autenticar a conexão dos usuários.
A Anatel concedeu uma medida cautelar, mas a Justiça derrubou-a. Depois, houve um recurso em favor da Claro e, finalmente, uma última decisão devolveu à Fox o direito de oferecer seus canais diretamente por meio de um aplicativo. A Fox também figura nos pacotes das operadoras.
Caso o novo marco legal considere esse tipo de veiculação um serviço de telecomunicações, gigantes estrangeiros de mídia deverão rever seus modelos de negócio. A Disney, por exemplo, se prepara para lançar sua plataforma de conteúdo na internet no Brasil.
O Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações disse que a radiodifusão segue balizada por legislação de 1962 e confirmou ser necessário revisar o marco legal, “modernizando a regulamentação”.
O ministério afirmou que pretende adequar as novas regras ao “novo ecossistema digital (internet)” para reduzir o que chama de assimetrias entre os ambientes de radiodifusão e o da internet, mas não detalhou de que forma serão tratadas as concessões de rádio e televisão.
A pasta disse que busca apoio do Congresso, com emendas parlamentares que somam R$ 5 milhões, sendo R$ 2 milhões previstos para 2020.
“Este é um desafio que o MCTIC pretende enfrentar nos próximos anos”, disse o ministério. Ainda segundo a pasta, deverão ser ouvidos os setores de radiodifusão, telecomunicações, a sociedade civil organizada e o setor acadêmico.
Por se tratar de um projeto de médio prazo, em fase inicial, ainda não é possível prever quando será enviado para apreciação do Congresso.
Por meio de sua assessoria, o presidente Jair Bolsonaro não quis comentar.
O QUE MUDARIA COM A NOVA REGRA
O governo quer exigir que as emissoras que peçam a renovação da concessão de rádio e TV paguem antecipadamente suas pendências tributárias, o que criaria empecilhos, pois a maioria das empresas possuem dívidas fiscais parceladas com a União. As concessões de Globo, Record e Bandeirantes vencem em 2022, último ano de mandato do presidente Bolsonaro.
Com Folha de S. Paulo
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