Calotes dados por empresas e governos estrangeiros geraram um rombo de R$ 1,38 bilhão ao Tesouro Nacional entre 2017 e 2018. O valor é resultado dos repasses feitos pelo FGE (Fundo Garantidor de Exportações) a bancos brasileiros que financiaram exportações de empresas brasileiras depois que os importadores deixaram de pagar as parcelas de empréstimos. Venezuela e Moçambique lideram o ranking do calote internacional. Os dados foram obtidos pelo UOL por meio da LAI (Lei de Acesso à Informação).
O FGE é um fundo vinculado ao Ministério da Economia, gerido pelo BNDES (Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social) e mantido com recursos da União. Ele funciona como um seguro para os bancos brasileiros que financiam as exportações de empresas brasileiras. Seus recursos são oriundos dos impostos pagos pelo contribuinte.
Depois que os recursos são repassados pelo FGE aos bancos, órgãos do governo se encarregam de negociar com as empresas ou governos estrangeiros para que os pagamentos sejam regularizados. Em dezembro de 2018, o fundo somava R$ 35 bilhões em ativos.
COMO FUNCIONA O FUNDO:
· O FGE é como um seguro
· Para facilitar as exportações brasileiras, bancos como o BNDES oferecem crédito aos países ou empresas importadoras com o compromisso de eles comprarem de fornecedores brasileiros
· O FGE é o seguro feito aos bancos para o caso de os importadores não pagarem os financiamentos
· Quando um importador deixa de pagar o empréstimo, o seguro é acionado e o dinheiro do FGE é usado para reembolsar o banco.
Os dados obtidos pelo UOL sobre os pagamentos feitos pelo FGE por meio da LAI são os mais recentes e trazem dados atualizados até janeiro de 2018.
Entre 2017 e 2018, o FGE desembolsou US$ 372 milhões a bancos brasileiros, o equivalente a R$ 1,38 bilhão de acordo com a cotação do dólar de quinta-feira (21). Esse valor é maior que o orçamento previsto para órgãos como o CNPQ (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), uma das principais agências de fomento do governo federal para pesquisa científica. Em 2019, o orçamento do CNPQ é de R$ 1,2 bilhão.
O fundo vem reembolsando bancos brasileiros desde 2000, mas o rombo nos anos de 2017 e 2018 chama a atenção porque ele representa um salto em relação à média dos pagamentos feitos pelo FGE.
Entre 2000 e 2016, o fundo desembolsou somente US$ 36 milhões, o que equivalente hoje a R$ 133 milhões. Dos US$ 372 milhões desembolsados entre 2017 e 2018, a Venezuela lidera a lista de inadimplentes. O país deu um calote de US$ 335 milhões (R$ 1,2 bilhão).
Essas faltas de pagamento fizeram com que o antigo Ministério da Fazenda aumentasse as provisões de recursos destinados ao fundo.
A nação comandada pelo ditador Nicolás Maduro enfrenta uma grave crise econômica e política e deixou de pagar repasses referentes às obras do metrô de Caracas, de uma usina siderúrgica no estado de Bolívar, à importação de carnes e laticínios e até referentes à compra de aeronaves.
Depois da Venezuela, vem Moçambique. O país africano deu um calote de US$ 29 milhões (R$ 102 milhões). Nos últimos dois anos, o FGE ressarciu empresas brasileiras responsáveis pela construção do aeroporto internacional de Nacala.
Cuba aparece em terceiro lugar no ranking da inadimplência. O calote do governo cubano referente a parte do financiamento para a construção do porto de Mariel fez com que o FGE repassasse US$ 6,05 milhões (R$ 22,5 milhões) a uma subsidiária da Odebrecht no país caribenho.
CALOTES ENVOLVEM INVESTIGADOS POR CORRUPÇÃO
A vasta maioria dos calotes que geraram o rombo no FGE aconteceu em exportações de bens e serviços de empresas brasileiras investigadas por corrupção no Brasil e no exterior.
Foi o caso da Odebrecht na Venezuela e em Cuba. No país comandado por Maduro, a Odebrecht foi contratada para as obras do metrô de Caracas. Em Cuba, uma subsidiária da empresa foi contratada para a obra do porto de Mariel.
Nos dois casos, as obras foram financiadas pelo BNDES. Executivos da companhia aderiram a um acordo de delação premiada em que revelaram um esquema de pagamento de propina a agentes públicos para obter contratos com o governo brasileiro.
A empresa também aderiu a um acordo firmado com o Departamento de Justiça dos Estados Unidos em que admitiu ter pago US$ 98 milhões em propinas a agentes venezuelanos para garantir contratos.
No caso de Moçambique, os calotes vieram por conta do financiamento feito pelo BNDES para a construção de um aeroporto no país. A obra foi contratada junto à Andrade Gutierrez.
Os calotes do governo moçambicano fizeram com que o FGE devolvesse, até 2018, US$ 71 milhões (R$ 263 milhões) ao banco. Executivos da companhia também aderiram a acordos de delação premiada no âmbito da Operação Lava Jato.
A JBS exportou carnes e laticínios para a Venezuela nos últimos anos. A operação foi financiada por bancos privados que estavam “seguradas” pelo FGE. Como o governo venezuelano deixou de pagar o financiamento, o fundo devolveu US$ 156 milhões (R$ 578 milhões) aos bancos, até 2018.
A CONTROVÉRSIA DAS “CAMPEÕES NACIONAIS”
Para a internacionalista Viviane Brunely, especialista em Relações Internacionais pela UnB (Universidade de Brasília) e pela FGV (Fundação Getúlio Vargas), o calote tomado pelo Brasil é, em parte, resultado da chamada política de “campeões nacionais” adotada pelos governos dos ex-presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff, ambos do PT, entre 2003 e 2016.
Essa política consistia em apoiar o processo de internacionalização de determinadas empresas em setores considerados estratégicos para o país. “Essa estratégia teve um lado bom que foi o do aumento da exposição do Brasil no exterior e permitiu que algumas empresas ganhassem novos mercados. Por outro lado, o governo acabou assumindo a responsabilidade por eventuais inadimplências”, afirmou.
Viviane diz acreditar que parte do prejuízo com os calotes internacionais poderia ter sido minimizada se o governo tivesse feito uma análise melhor sobre o potencial de pagamento de países como a Venezuela.
“Tanto a Venezuela quanto Moçambique são países que já tinham um histórico de inadimplência. Era um risco que poderia ter sido melhor calculado”, afirma.
Já o professor do Departamento de Economia da UnB José Luis Oreiro afirma que o prejuízo causado pelos calotes internacionais é normal em matéria de comércio exterior e que, ainda que a política de “campeões nacionais” possa ter tido erros na sua execução no caso brasileiro, ela é utilizada por diversos países.
“A Alemanha, a Coreia do Sul, os Estados Unidos e outros países fizeram e continuam adotando essa mesma política. No Brasil, se eu fosse tomador de decisão, não teria favorecido algumas empresas ou alguns setores, mas, em geral, essa política foi acertada”, afirmou.
“Esse tipo de prejuízo é normal quando se trata de comércio exterior. É um risco que é possível calcular, mas do qual não se está livre. Isso acontece o tempo inteiro seja na iniciativa privada, seja no setor público”, afirmou. Sobre a avaliação dos riscos de inadimplência de países como a Venezuela, Oreiro diz que, no momento em que as exportações foram contratadas, era difícil prever que o país iria passar por um colapso econômico.
“Há operações de 2009, quando o petróleo, principal produto de exportação da Venezuela, estava com um preço bastante elevado. Nesse cenário, era difícil imaginar uma queda brusca desse produto”, afirmou.
OUTRO LADO
Questionado sobre os calotes levados pelo banco nos últimos anos, o BNDES disse que está “constantemente buscando aprimorar sua atuação, observando os movimentos do mercado e as características da indústria nacional”.
O banco disse ainda, por meio de sua assessoria de imprensa, que, em 2016, anunciou “novos procedimentos para financiar exportações de serviços de engenharia e construção” como os que beneficiaram empresas como a Odebrecht e Andrade Gutierrez.
Nessa reformulação, as empreiteiras brasileiras e o governo ou empresa importadora ficam obrigadas a assinarem termos de compliance nos quais eles concordam com a “aplicação de punições em caso de descumprimento de finalidade do contrato e de aplicação dos recursos do financiamento”.
O BNDES disse ainda que, apesar dos repasses feitos pelo FGE nos últimos anos, o fundo tem um superávit de US$ 800 milhões (R$ 3 bilhões).
UOL
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