Não basta estar atento e vigilante. No jogo das notícias falsas, buscar instrumentos legais que garantam a ampliação da segurança e da qualidade das informações que circulam dentro e fora do mundo digital é apenas um dos muitos passos a serem dados para garantir a segurança e a continuidade da democracia.
Um dos motivos que me fazem trazer à tona o assunto novamente é que está prestes a ser votado pela Câmara o Projeto de Lei 2630/2020, também conhecido como PL das Fake News. Ele prevê, entre outros pontos, regras para regular ação das “big techs” no Brasil e barrar propagação de notícias falsas. É um projeto polêmico, difícil, mas extremamente necessário para todos, uma vez que nem só de freio ou de aceleração é feita uma democracia.
Semelhante ao debate que vem sendo feito sobre o PL das Fake News, foi criado também uma espécie de boato (e por que não chamar de fake news?) durante o período de aprovação do Marco Civil da Internet. Havia essa preocupação de que o Marco criaria uma censura, o que definitivamente não foi o que aconteceu.
Mas por que regulamentar ou não a ação dessas gigantes da comunicação digital? Muito mais que uma discussão técnica, no Brasil, o caso tornou-se uma questão de polarização política. Em linhas gerais, podemos dizer que enquanto a maior parte dos parlamentares de esquerda luta pela regulamentação das Bigtechs, a direita, majoritariamente, acusa o projeto de Lei de tentativa de censura.
O fato é que os episódios recentes da história política do Brasil mostram que as notícias falsas vêm ganhando cada vez mais destaque no cenário político de polarização. Mas nem só sobre fake news versa o PL das Fake News. Na verdade, esse apelido nem de longe transmite a abrangência do projeto.
Humanização e responsabilidade social
Na verdade, a proposta cria a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet que tem como principal objetivo estabelecer obrigações a serem seguidas por redes sociais, aplicativos de mensagens e ferramentas de busca na sinalização e retirada de contas e conteúdos considerados criminosos.
Ou seja, contas e conteúdos relacionados à pedofilia, pornografia de vingança, incitação ao suicídio, cyberbullying e até mesmo extorsão estão na mira da nova Lei que busca, na realidade, mostrar que a internet não é terra de ninguém. Essa luta para garantir o apoio das Bigtechs no combate a crimes não é de hoje, uma vez que a falsa sensação de anonimato proporcionada por essas plataformas, por exemplo, acaba muitas vezes impulsionando a realização de atos criminosos.
Mas este é o grande ponto da polarização: combater a disseminação de informações falsas e nocivas na internet inclui também combater as fake news da política, que vêm sendo amplamente usadas nos últimos anos como arma de linha de frente dentro e fora do período eleitoral.
Além disso, a criminalização do chamado “discurso de ódio”, que nada mais é do que um conteúdo que incita a violência, a discriminação ou o preconceito em relação a raça, gênero, orientação sexual, religião ou qualquer outra forma de discriminação, também vem revoltando a ala mais conservadora, que se vê impedida de, por exemplo, usar a religião para discriminar ou agir de forma preconceituosa em nome de sua orientação religiosa.
Nesse embate sobre o que fica ou sai do texto da Lei, a criação de uma agência reguladora, apontada veementemente pela oposição como uma tentativa de criar um órgão de censura em pleno governo democrático, foi retirado do PL pelo relator do projeto.
Avanço concreto
Segundo o texto apresentado e enviado para a votação na próxima terça-feira (2), véspera do Dia Internacional da Liberdade de Imprensa, caso haja
descumprimento da lei e risco aos direitos fundamentais da população, a fiscalização dos provedores (redes sociais, aplicativos de mensagem instantânea a ferramentas de busca) será realizada nos termos de regulamentação própria.
Este é um grande avanço. Afinal, qualquer comunicador, seja ele ou não um jornalista, que vá a qualquer veículo de comunicação proferir qualquer descumprimento às leis ou colocar em risco os direitos da população deverá ser responsabilizado por seus atos. O que nem todo mundo entende é que a própria natureza da internet e suas plataformas de comunicação deram ao cidadão comum o poder de se tornar, também, um comunicador. É preciso entender que, em maior ou menor escala, quando comentamos, curtimos ou compartilhamos em nossas redes sociais, nós estamos comunicando para uma rede de contatos. Esse entendimento precisa crescer.
Por outro lado, se o cidadão comum não tem a exata noção do seu poder dentro das redes sociais (seja para o bem ou seja para o mal) as grandes plataformas conhecem muito bem suas responsabilidades. Mas o que poucos dizem ou querem admitir é que notícias falsas, crimes de ódio, entre outros já apontados neste texto são conteúdos de alto poder mobilizador, seja por apologia ou por críticas. Ou seja, mobilizam a audiência dentro das plataformas que ficaram conhecidas como um lugar de “livre expressão”. Em outras palavras, um lugar no qual tudo pode ser dito ou compartilhado sem que lhe acometa o devido peso da lei.
Mas, afinal, o que muda para as plataformas com a nova Lei?
1.Identificação de usuários: as empresas de redes sociais e aplicativos de mensagens devem adotar mecanismos para identificar usuários.
2.Mais Transparência: as empresas devem fornecer informações claras sobre suas políticas de privacidade, segurança, moderação de conteúdo e algoritmos.
3.Moderação de conteúdo: as empresas devem adotar medidas para a moderação de conteúdo, incluindo a remoção de conteúdos ilegais e a identificação de informações falsas.
4.Rastreamento de mensagens: as empresas devem permitir o rastreamento de mensagens encaminhadas em massa para identificar a origem de conteúdos falsos.
5.Educação digital: o projeto prevê a criação de programas de educação digital para conscientizar os usuários sobre a importância da verificação de fontes e da responsabilidade na disseminação de informações.
6.Responsabilidade civil e criminal: as empresas e usuários que disseminarem informações falsas e prejudicarem a reputação de outras pessoas ou instituições podem ser responsabilizados civil e criminalmente.
Todas essas mudanças trazem um impacto direto e significativo para as empresas de tecnologia e redes sociais, que vão precisar investir em tecnologias e recursos para cumprir as novas regras e garantir a segurança e a privacidade dos usuários. Além disso, as mudanças demandam que as empresas se adaptem a um novo modelo de responsabilização, que, caso seja aprovado, coloca o Brasil como pioneiro em toda a América.
É preciso reforçar que notícias falsas causam prejuízos pessoais e coletivos. Quando o assunto é o uso político da desinformação, o caso fica ainda mais complexo e nocivo, causando danos à sociedade e à democracia. Seus efeitos podem ser profundos, afetando diversas frentes como saúde, meio ambiente, economia, segurança e a própria política e trazendo um impacto negativo na confiança das pessoas nas instituições democráticas, criando divisões e tensões na sociedade.
Vivemos uma epidemia de desinformação que está diretamente relacionada com os novos modelos de comunicação que transformaram a maneira como as notícias são veiculadas. Fenômenos como a compulsão por informação e entretenimento e a chegada do 5G no país tendem a impulsionar ainda mais a criação das chamadas notícias falsas.
Por isso, o combate às fake news e à desinformação é um grande desafio mundial que requer ações coordenadas e esforços colaborativos envolvendo governos, empresas de tecnologia, organizações da sociedade civil e indivíduos. Além disso, a promoção da alfabetização midiática e digital para ajudar as pessoas a identificar e combater a desinformação e fortalecer a transparência e a responsabilidade das fontes de informações proposta pela Lei brasileira também se faz extremamente necessária.
Desta forma, finalizo minhas palavras e reitero o sentimento de que, sim, é possível coexistir na democracia com liberdade e regulação.
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