O Equador atravessa um dos seus mais dramáticos momentos da história. Guayaquil, a capital, é a Wuhan do Equador e palco de um verdadeiro desastre. No vizinho sulamericano, não apenas foram hospitais que entraram em colapso, mas mortuárias. Na cidade portuária onde foi detectado o primeiro caso, importado da Espanha, é o principal foco de contágio do país, com 70% dos 2.758 positivos, e é onde foram impostas as medidas mais fortes no início do estado de exceção.
Depois de duas semanas de toque de recolher e da suspensão das atividades profissionais, prorrogada até 5 de abril, Guayaquil é o prisma que revela o desespero da população pelas mortes de seus entes queridos e a incapacidade das autoridades para agir a tempo. Segundo as cifras oficiais, o coronavírus cobrou a vida de 98 pessoas no país, sendo ao menos 60 delas em Guayas, a província da qual Guayaquil é a capital.
Além disso, há outros 76 falecimentos que não puderam ser confirmados como vinculados à Covid-19, porque os exames não chegaram a tempo ou não foram conclusivos. Mesmo assim, as autoridades os relacionam como causa da morte provável.
Em contraste com essas cifras, não deixaram de aparecer nas redes sociais e nos meios nacionais uma onda constante de denúncias de pessoas de Guayaquil que perderam algum familiar com sintomas como tosse, febre e insuficiência respiratória e que estão há dias esperando para que alguém vá retirar seus cadáveres de dentro de casa. Isso pode levar até quatro dias, recriminam alguns, que precisam suportar o calor e o mau cheiro provocado pelos cadáveres acumulados. Outros, desesperados com a presença dos corpos, os atiraram na calçada. E todos coincidem em reclamar que ninguém tenha aparecido para recolhê-los apesar dos insistentes chamados ao número de emergência 911.
O Governo equatoriano, inicialmente reticente a se pronunciar ou a vincular esta situação com o impacto do vírus no Equador, terminou por reconhecê-la e apresentará um relatório semanal sobre as mortes em geral, como que buscando justificar as estatísticas excepcionalmente elevada de mortos na última semana em relação à média anual. “Em circunstâncias normais temos 6.000 falecimentos mensais no país. Em Guayaquil, em janeiro, tivemos 828 falecimentos. Neste momento, temos a mesma quantidade de mortes, mas agravada pelas circunstâncias”. Não é possível vincular essas mortes ao coronavírus se não forem feitos os exames que, no Equador, apesar de ser o segundo país da região em número de mortos o terceiro em contágios, é um dos que menos amostras coletaram até agora: 9.019. “A realização dos testes é o único que nos confirmam que as mortes se deram pela Covid-19. Teremos mais dados quando chegarem os testes rápidos”, afirmou o vice-ministro da Saúde, Ernesto Carrasco. Nesta quarta-feira foi registrado um pico de casos confirmados, 408 a mais que na terça-feira.
Primeiro foram os serviços de emergências, relatando muitas mais chamadas que o habitual em um só dia para o recolhimento de cadáveres em casa – 40 casos, contra uma média de 14 falecimentos domésticos por dia em Guayaquil. Depois, a polícia ofereceu uma aproximação mais detalhada da dimensão do coronavírus na segunda cidade mais importante do país, depois de Quito, com mais de 2,5 milhões de habitantes: 450 corpos na lista de espera para serem retirados, segundo o jornal El Universo. Finalmente, o Registro Civil começou na segunda-feira passada, dia 23, a anotar até uma centena de atas de falecimento por jornada com um pico muito mais pronunciado no início desta semana em Guayas. Mas todas estas cifras, apesar do aumento excepcional em tão poucos dias, não podem ser relacionado de forma exclusiva, precisa e oficial ao coronavírus. Pela falta de diagnóstico.
De qualquer forma, as estatísticas disponíveis e as denúncias populares provocaram uma reação do Governo. Primeiro, propôs abrir um espaço para enterros coletivos. As autoridades municipais chegaram a cogitar uma vala comum, que afinal foi revista para garantir sepulturas individuais. Segundo, permitiu-se aos cemitérios que prorroguem seu horário até as 17h, depois do toque de recolher das 14h, para reduzir as filas de espera em suas portas. Prestadores de serviços funerários foram autorizados a trabalhar em tempo integral. As Forças Armadas, além disso, foram incorporadas à tarefa de coleta de cadáveres, sejam por suspeita de Covid-19 ou outras causas; agilizou-se a burocracia para as famílias e foram contratados contêineres refrigerados para conservar os corpos que não puderem ser transladados aos necrotérios por falta de espaço até que sejam corretamente sepultados. Por último, as autoridades de Saúde determinaram que a cremação não era um requisito indispensável, nem sequer para as vítimas da Covid-19.
Até a noite desta terça-feira, segundo os porta-vozes do Executivo que divulgam os boletins regulares de dados e informações, seria concluída a retirada de corpos que vinham se acumulando nos últimos dias dentro das casas ou na rua. Mas o lamento dos moradores de Guayaquil continua, e ainda há cadáveres envoltos em plásticos, em lençóis ou em caixões esperando para serem recolhidos.
El País
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