O réu Bolsonaro seria o melhor advogado de Lula
Por Mario Rosa
Bolsonaro e Lula.
Antípodas, certo?
Antes de começar a ler, que fique claro que este texto não é –não é!– a resenha do primoroso livro de Luiz Maklouf Carvalho O Cadete e o Capitão (Travessia, 253 páginas). A resenha propriamente dita eu a fiz na semana passada e procurei ser fiel ao conteúdo da obra. O que escrevo aqui é uma espécie de crônica, uma associação literária livre que nada tem a ver com o livro e parte de uma singularidade das biografias de Bolsonaro e Lula: ambos têm algo em comum, pelos tortuosos caminhos do destino. Ambos, as evidências agora surgem, foram submetidos a julgamentos em que a imparcialidade pode ser questionada. A partir dessa surpreendente conexão, é que me aventuro a fazer outras, talvez improváveis, talvez fictícias, mas debite isso a um esforço de olhar o nosso tempo para além da compulsão esquemática destes dias tão polarizados. O livro de Bolsonaro serviu apenas como inspiração. O que está aqui nada tem a ver com a obra. Tem a ver com as minhas conexões, absurdas ou não, depois de lê-la.
“Repudio o tratamento que tenho sofrido…pré-julgamento manifestado dura, ofensiva e ostensivamente…nego veementemente…(há) gritante cerceamento do direito de defesa…o benefício da dúvida é totalmente favorável ao acusado…esse processo constitui uma aberração jurídica…(não há) um fato causador de ofensa à ética… (a acusação é movida) por uma convicção pessoal e parcial.” Fala de Lula e de seu advogado? Não. De Bolsonaro e sua advogada, quando o atual presidente era réu, em manifestações agora trazidas a lume pelo livro O Cadete e o Capitão. Lula e Bolsonaro poderiam ter sido advogados um do outro. Foi o que pensei ao ler esses trechos. Suas teses de defesa foram iguais quando estiveram os dois na posição de acusados. De novo: isso não tem nada a ver com o livro. É a minha singela opinião.
Vou mais longe. Chega a ser até surpreendente como algumas paralelas nas vidas dessas duas trajetórias tão díspares, de forma tão improvável, se encontram no infinito das coincidências. Bolsonaro, como Lula, também não foi julgado? E como Lula não se sentiu injustiçado? E –como são estranhos os caminhos da vida, não?– Bolsonaro não se tornou conhecido por chamar a atenção do país como porta-voz das insatisfações salariais de sua categoria? Não foi assim quando publicou o texto O salário está baixo na revista Veja, ainda como capitão da ativa, um gesto ousado de indisciplina, quase como um líder sindical verde-oliva? E não foram nas greves do ABC na virada dos anos 1980 que o Brasil conheceu a liderança do metalúrgico que comandava as paralisações para pedir aumento salarial para a sua categoria? Não foi ali que o líder sindical começou a despontar com sua barba e sua voz rouca? E, tal como Lula, Bolsonaro não se tornou nacionalmente conhecido por ter sua imagem projetada pela imprensa? Justamente porque, como Lula, teve um gesto ousado se enfrentar…o poder militar? E, como Lula, Bolsonaro não passou uma breve temporada na cadeia antes de chegar à Presidência da República?
Você pode dizer, não sem razão: Bolsonaro nunca foi um líder sindical como Lula e comparar as paralisações da década de 1980 e a dimensão de seu enfrentamento com o texto de Bolsonaro de 1987 expondo a insatisfação salarial dos militares é um disparate. Sob o prisma da tantas vezes enganosa objetividade, pode-se dizer que sim. Mas olhando a História com uma lente um pouco mais abstrata, é um tanto perturbador deparar com a constatação difusa de que o presidente eleito após a criminalização absoluta de Lula e de seu partido num julgamento hoje contestado tenha um dia defendido, para si, a observância do devido processo legal. E que ambos tenham se projetado no imaginário nacional após ganharem destaque, em graus diferentes, sim, mas pela defesa de questões salariais de suas respectivas categorias. E que a mola que os impulsionou do anonimato para a fama tenha sido a visibilidade alcançada pela exposição na imprensa.
Mas há o fato em comum primordial que une as biografias de Bolsonaro e Lula. Graças ao levantamento primoroso de documentos históricos feito por Maklouf em seu livro, surgem agora indícios que tanto um quanto o outro podem ter sido réus em julgamentos que não foram absolutamente imparciais. No caso de Lula, a parcialidade vem sendo reforçada pelos vazamentos do vasto conteúdo de mensagens divulgadas pelo site Intercept em conjunto com diversos órgãos de imprensa, mostrando as comunicações de um aplicativo utilizado por integrantes da força tarefa da operação Lava Jato.
No caso de Bolsonaro, cabe a Maklouf trazer à superfície um olhar mais atento sobre as perícias grafotécnicas de manuscritos de Bolsonaro que serviram como base para o veredito do então capitão pelo Superior Tribunal Militar. Em síntese, o que Maklouf demonstrou com sua pesquisa é que os dois laudos considerados pelo Exército para punir Bolsonaro foram transformados no STM numa inventiva argumentação segundo a qual haveria dois laudos que inocentariam o então capitão e dois que o condenariam. Essa tese, criada por Bolsonaro, na prática significou a desconsideração do julgamento feito pelo Exército, permitindo a absolvição, no que pode ser entendido como uma decisão parcial dos magistrados.
Para mim, o que enxergo é que até nisso Bolsonaro e Lula são paralelas que se encontram no infinito. Ambos podem ter tido julgamentos parciais. No caso de Bolsonaro, se as periciais tivessem sido consideradas como conclusivas, ele poderia ter sido condenado e expulso do Exército. Como prevaleceu a visão de que havia “dúvida” nos laudos técnicos, foi inocentado. Essa é uma diferença –de mérito– na biografia dos dois personagens. A parcialidade pode ter sido útil para absolver Bolsonaro, enquanto no caso de Lula para condenar. Mas o que realmente importa –para além das consequências deletérias de juízos quando exercidos sem isenção– é que os argumentos de Bolsonaro são os de Lula –“cerceamento do direito de defesa”. São os de todos os acusados, justa ou injustamente. Nisso, eles terão sido um dia iguais. E, nisso, nunca deixarão de ser.
* Texto publicado em Poder360
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