O leão e as hienas: a fábula da vítima autoritária
Quem se lembra de um texto infame e golpista, que descrevia um Brasil de gestão impossível se o governo não se rendesse às chantagens das corporações, que Jair Bolsonaro divulgou em maio de 2019, às vésperas de uma das bizarras manifestações oficiais – convocadas por seus agentes – em defesa do presidente contra a ameaça do tal establishment?
Ora, o vídeo das hienas – que Bolsonaro compartilhou e apagou – é apenas mais uma atualização na estratégia de vitimização bolsonarista que, em campanha permanente e investindo em teorias da conspiração, precisa cultivar inimigos artificiais constantes.
(Registre-se, em tempo, que novas manifestações pró-governo – este exotismo mui comum na Venezuela – estão marcadas para novembro.)
O caso da hiena STF, aliás, é exemplar da mentalidade bolsonarista aplicada: estica a corda – deprecia um pouco mais um Poder da República – para depois afrouxar, tendo já avançado uma nova casa na estratégia de tensão e forja de crises.
Isto é um padrão. Acostumemo-nos.
A fábula alarmante – em que o leão, patriota, conservador e cristão, vê-se cercado de hienas covardes, traiçoeiras, decerto comunistas e globalistas – é e será também a desculpa perene para toda a sorte de incompetências do governo. As hienas – o sistema maldito, as instituições intermediárias, mecanismos de mediação, imprensa incluída – concertar-se-iam para impedir que o leão reinasse.
A figura do leão, o rei da criação, o imperador da selva, é mesmo primorosa para um líder populista que despreza a impessoalidade republicana, com seus freios e contrapesos reguladores, e cujo projeto autocrático de poder depende do personalismo que apregoa que esses negócios de Congresso e STF só atrasam e atrapalham; que o governante pode e deve governar falando a verdade – claro – diretamente à população, sem filtros e apreciações críticas.
Afinal, já disse um dos príncipes, é mais fácil governar com menos democracia.
São tantas as ações de guerrilha como essa do vídeo que nos esquecemos de fixar o óbvio: que é o presidente da República, com raras exceções, aquele que deflagra o conflito do qual se dirá vítima. Foi assim no embate com o PSL; do qual, diga-se, o bolsonarismo – tudo indica – saiu vitorioso. É assim agora.
No cerne da representação do leão acuado, não nos esqueçamos, há sempre um estímulo a que outros animais da floresta – também patriotas, conservadores e cristãos – mobilizem-se, de repente na Paulista, para uma manifestação de força que exponha os dentes do bolsonarismo e sua natureza para uma mordida rompedora. Os burros e os jumentos nunca faltam, tampouco os bois de piranha e aquela dupla famosa, o sapo e o escorpião.
Há o ditado segundo o qual cachorro que ladra não morde. Não sei se a máxima se confirma estatisticamente. Sei que cachorro louco, cedo ou tarde, morre cachorro louco. Sei também que, em matéria democrática, os latidos frequentes – as confrontações permanentes – são atos de raiva que, disseminados na sociedade, instilam o veneno autoritário, minam o convívio social e enfraquecem os valores que dão equilíbrio, limite, a nosso arranjo de poder.
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