Não há dúvidas de que o interesse de ingresso do Brasil na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) tem sido um dos temas mais recorrentes em manifestações das altas autoridades do governo, desde o início de 2019. A recente declaração de apoio dos Estados Unidos à entrada do maior país da América Latina no popularmente chamado “clube dos ricos” certamente abriu as portas para a realização desse importante intento do governo federal, o que renderá muitos frutos para o país no médio e longo prazo.
Entretanto, essa admissão como membro da OCDE não será uma corrida de 100 metros rasos, mas uma verdadeira maratona a ser percorrida, muito embora precisemos reconhecer que medidas preparatórias já vêm sendo tomadas pelo governo federal por mais de duas décadas. Um dos seus mais importantes marcos foi a adesão do Brasil à Declaração de Investimentos da OCDE, ainda em 1997, bem como a criação do Ponto de Contato Nacional (PCN) no mesmo ano: uma representação institucional responsável por promover a implementação das diretrizes para empresas multinacionais, construídas no âmbito do Comitê de Investimentos da OCDE. O PCN Brasil é composto por autoridades ligadas aos Ministérios da Economia; da Mulher, Família e Direitos Humanos; da Justiça e Segurança Pública; e das Relações Exteriores, dentre outros, conforme a Portaria 548/2019, da Secretaria Especial de Comércio Exterior e Assuntos Internacionais do Ministério da Economia, que estabeleceu nova estrutura para o PCN. Uma outra competência importante do PCN é receber alegações de inobservância das diretrizes da OCDE por parte de empresas multinacionais com sede no Brasil, advindas de pessoas físicas ou jurídicas, tais como sindicatos, organizações empresariais, ONGs em geral, etc. É a instância apropriada para processos de mediação relacionados ao descumprimento das diretrizes.
Todavia, o estreitamento das relações entre o Brasil e a OCDE se intensificou a partir de 2015, ano em que foi assinado um acordo de cooperação específico, fortalecendo o engajamento desses atores e resultando no OECD-Brazil Joint Work Programme (“Programa de Trabalho Conjunto OCDE-Brasil” 2016-2017), projetado para dar apoio ao país no avanço de sua agenda de reformas. Desse modo, com base no pedido formal de adesão feito em 2017, o atual governo deu continuidade ao projeto de adesão e continua a propagar sua clara e inabalável intenção de integrar a entidade como membro, reafirmando sua disposição de alinhar as políticas públicas nacionais com as da OCDE, conforme se extrai, por exemplo, do discurso do presidente Jair Bolsonaro na abertura da 74.ª Assembleia Geral da ONU em 2019, ao afirmar que “estamos prontos também para iniciar nosso processo de adesão à Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Já estamos adiantados, adotando as práticas mundiais mais elevadas em todo os terrenos, desde a regulação financeira até a proteção ambiental”. Há poucos dias, na Mensagem ao Congresso Nacional 2020, o presidente enfatizou: “A acessão do Brasil à OCDE é o resultado esperado de um longo processo de aproximação, imensamente acelerado no ano de 2019”.
De acordo com a própria organização, em sua publicação Active with Brazil, o Brasil tem sido, dentre os Estados não membros, o parceiro-chave mais engajado. Tem sido convidado para todas as reuniões e participado de mais órgãos, projetos e programas, bem como aderido a mais instrumentos da OCDE do que todos os demais países que demonstram interesse em se tornar membros. Por todas essas razões, além, é claro, do importante apoio de Donald Trump, o Brasil encontra-se atualmente em uma excelente situação nessa árdua e multifacetada jornada.
Não obstante, quando se fala de uma organização que existe para promover o livre mercado, e que é composta por países ricos, poucos se dão conta de que a OCDE tem um escopo muito maior do que o que se possa inicialmente avaliar. Em recente publicação, de maio de 2019 (Discover OCDE: Together We Create Better Policies for Better Lives), a instituição afirma que seu objetivo é “moldar políticas que promovam prosperidade, igualdade, oportunidade e bem-estar para todos”. E, complementando as razões de sua existência, acrescenta: “Juntamente com governos, formuladores de políticas e cidadãos, trabalhamos para estabelecer normas e encontrar soluções baseadas em evidências para uma variedade de questões sociais, econômicas e ambientais”. Em outras palavras, pode-se afirmar que a OCDE busca o chamado desenvolvimento econômico com sustentabilidade social e ambiental, um equilíbrio entre áreas que têm sido muitas vezes tratadas como antagônicas e irreconciliáveis por parte de alguns grupos mais radicais que formam o complexo espectro político-ideológico brasileiro.
Dentre os temas de interesse da OCDE, que parecem passar despercebidos à grande maioria dos que desejam que o Brasil seja membro da organização, encontra-se a polêmica e movediça pauta dos direitos humanos, que de conteúdos universais claros, unânimes e bem definidos, insculpidos na memorável Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, elaborada após a Segunda Guerra Mundial, foi se tornando, com o passar dos anos, um instrumento de manipulação retórica, uma pobre vítima de um nauseante processo de encarceramento ideológico. Segundo o filósofo francês Michel Villey, em sua obra O Direito e os Direitos Humanos, a linguagem dos direitos humanos acabou se tornando uma ferramenta de mil usos. “Usaram-na em proveito das classes operárias ou da burguesia – dos malfeitores contra os juízes – das vítimas contra os malfeitores.”
Também demonstrando profunda preocupação com a situação atual dos direitos humanos, Mary Ann Glendon, brilhante professora da Universidade de Harvard e recentemente nomeada por Mike Pompeo como presidente da Comissão de Direitos Inalienáveis do governo americano, expressou as seguintes conclusões em seu artigo Renewing Human Rights (“Renovando os direitos humanos”): “agora que a Declaração Universal dos Direitos Humanos completou 70 anos, a ideia de direitos humanos internacionais está em crise, perdendo apoio tanto em nível nacional como internacional. Boas intenções, erros honestos, políticas de poder, e o puro e simples oportunismo têm exercido um importante papel para um crescente ceticismo e até mesmo reações contrárias ao tema”. E, ainda sobre a intencional fragmentação imposta à declaração elaborada no pós-guerra, Glendon complementa: “A tinta da Declaração Universal dos Direitos Humanos mal tinha secado, quando os antagonistas da Guerra Fria a rasgaram no meio, por assim dizer, com os Estados Unidos defendendo os direitos civis e políticos, e a União Soviética defendendo os direitos sociais e econômicos. Cada lado extraiu as partes daquele documento integrado que mais se adequavam aos seus propósitos, e ignorou o resto”.
No caso do Brasil é fácil perceber que, em tempos de transição de pautas progressistas para mais conservadoras, bem como a troca de um modelo econômico estatizante e intervencionista para um modelo mais liberal, muitos que apoiam o atual governo tendem a julgar qualquer discurso sobre direitos humanos como algo relacionado ao modelo vencido nas últimas eleições, isto é, atrelam o tema dos direitos humanos às agendas de esquerda, que não só impediam o avanço de uma pauta moral conservadora, mas também criavam, segundo seus críticos, obstáculos ao desenvolvimento econômico do país.
De fato, nos dias de hoje e diante de um cenário onde impera uma verdadeira polissemia jurídica no campo dos direitos humanos, soa confuso para alguns vincular uma organização de histórico liberal, como a OCDE, a uma pauta marcada por tantas divergências conceituais e que, ao menos na América Latina, tem sido considerada uma bandeira privativa dos movimentos comunistas e socialistas. Afinal, a OCDE combina com as pautas de direitos humanos, inclusive com os conceitos de sustentabilidade social e ambiental? Se a Declaração Universal dos Direitos Humanos foi “rasgada ao meio” pelos dois blocos da Guerra Fria, estaria a OCDE tentando “costurar” o tecido puído dos chamados direitos humanos universais? Como a temática dos direitos humanos ingressou na OCDE?
Quando a OCDE estabeleceu as Diretrizes para Empresas Multinacionais, no ano de 1976, não havia nenhuma menção à questão dos direitos humanos. Entretanto, na atualização ocorrida em 2011, foi incluído um título específico sobre o tema, ocorrendo assim um alinhamento das suas diretrizes aos chamados Princípios Orientadores da ONU para Empresas e Direitos Humanos, aprovados unanimemente pelo Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas meses antes, em junho de 2011. Essa atualização foi um marco histórico no que se refere à inclusão da pauta dos direitos humanos dentre os temas de interesse da OCDE, um novo desafio para o “grupo dos ricos”, um convite ao equilíbrio de valores e princípios aparentemente irreconciliáveis.
De acordo com o Título IV das Diretrizes da OCDE para Empresas Multinacionais, de 2011, “Os Estados têm o dever de proteger os direitos humanos. As empresas deverão, no contexto dos direitos humanos internacionalmente reconhecidos, das obrigações internacionais de direitos humanos dos países em que operam, bem como da legislação e regulamentação domésticas: 1. Respeitar os direitos humanos, o que significa que elas devem evitar a violação aos direitos humanos dos outros e devem lidar com os impactos adversos aos direitos humanos com os quais estejam envolvidas. 2. Dentro do contexto de suas próprias atividades, evitar causar ou contribuir para impactos adversos aos direitos humanos e tratar desses impactos quando ocorrem. 3. Procurar maneiras de evitar ou mitigar os impactos adversos aos direitos humanos que estejam diretamente ligados às suas operações comerciais, produtos ou serviços por uma relação de negócio, mesmo que elas não contribuam para esses impactos. 4. Ter uma política de compromisso de respeitar os direitos humanos. 5. Realizar devida diligência sobre direitos humanos adequada à sua dimensão, natureza e âmbito das operações e da gravidade dos riscos de efeitos adversos aos direitos humanos. 6. Prever ou cooperar através de processos legítimos na reparação de impactos adversos aos direitos humanos onde elas identifiquem que tenham causado ou contribuído para esses impactos”. Como se observa acima, a OCDE afirma que os Estados têm o dever de proteger os direitos humanos e as empresas têm o dever de respeitar esses direitos, bem como de reparar eventuais impactos adversos por elas causados. Esse passou a ser um novo paradigma para o avanço do capitalismo no mundo. Um desafio capitaneado pela OCDE e dirigido aos governos e empresas do mundo inteiro.
No Brasil, a Secretaria Nacional de Proteção Global é o órgão competente do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos para coordenar as ações referentes às políticas públicas na temática de empresas e direitos humanos, tendo se dedicado ao estabelecimento de uma agenda voltada ao fortalecimento da proteção e respeito aos direitos humanos pelo setor público e empresarial, e envidando esforços para a implementação efetiva dos já referidos Princípios Orientadores sobre Empresas e Direitos Humanos da ONU e que, como já foi dito, serviu de inspiração para a atualização das Diretrizes da OCDE para Empresas Multinacionais. Desse modo, junto com o PCN Brasil, alocado na estrutura do Ministério da Economia, a Secretaria Nacional de Proteção Global é o órgão que tem competência para tratar da presente pauta. Assim, em termos de estrutura governamental, e no que concerne ao tema de empresas e direitos humanos, o Brasil está apto a prosseguir com passos firmes em direção à entrada na OCDE.”
Nesse sentido, em janeiro de 2019, foi lançado o Projeto Conduta Empresarial Responsável na América Latina e Caribe (Ceralc), em uma iniciativa conjunta da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da OCDE e do Escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para Direitos Humanos, com a colaboração e financiamento da União Europeia. De acordo com as instituições envolvidas, o inédito projeto tem o objetivo de promover um crescimento inteligente, sustentável e inclusivo tanto na União Europeia como na América Latina, por meio do fomento de condutas empresariais responsáveis que estejam alinhadas aos instrumentos da OCDE (Diretrizes para Empresas Multinacionais), da ONU (Princípios Orientadores para Empresas e Direitos Humanos) e da OIT (Declaração Tripartite de Princípios sobre Empresas Multinacionais e Política Social). O que chama a atenção é que, pela primeira vez na história, essas três importantes instituições de direito internacional estão trabalhando juntas, a partir das suas próprias especialidades e instrumentos, contando com o apoio da União Europeia, para a promoção de condutas empresariais responsáveis na América Latina.
Nove países foram escolhidos para o desenvolvimento da iniciativa: Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, Equador, México, Panamá e Peru. Com um investimento de 9,5 milhões de euros, o plano de implementação do projeto terá a duração de 48 meses, entre 2019 e 2022, e três objetivos principais: 1. Apoiar os governos da América Latina e o do Caribe no desenvolvimento e/ou implementação dos Planos Nacionais de Ação sobre Empresas e Direitos Humanos e Conduta Empresarial Responsável; 2. Melhorar o entendimento e a capacidade dos stakeholders (especialmente empresas) de implementarem a devida diligência (due diligence) no processo de identificação, prevenção e resposta aos impactos adversos sobre os direitos humanos, condições dignas de trabalho e meio ambiente; e 3. Facilitar a troca de experiências e lições aprendidas, e desenvolver iniciativas coletivas que promovam a Conduta Empresarial Responsável (CER). Tais objetivos serão atingidos por meio de atividades de diagnóstico, avaliação e desenvolvimento de capacidades dos atores envolvidos, em um processo colaborativo.
A execução do projeto será coordenada, conforme informações da gerente da OCDE para a América Latina, pelos especialistas do quadro da Organização, com o suporte governamental do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, através da Secretaria Nacional de Proteção Global, e do Ponto de Contato Nacional (Camex/Ministério da Economia), e terá como próximas etapas: o envio de questionário ao governo brasileiro, para o fim de revisão das suas políticas; resposta do questionário e coleta de informações, incluindo reuniões com partes interessadas. Após a coleta e análise, a OCDE enviará versão preliminar do relatório ao governo para comentários e feedback. Terminado esse processo, o relatório será submetido ao grupo de trabalho da OCDE para Conduta Empresarial Responsável, que definirá a versão final para lançamento e publicação. Os relatórios da OCDE costumam descrever a situação do país quanto à temática analisada, conter revisões por representantes de outros países membros da OCDE (revisão por pares ou peer review) e incluir recomendações sobre medidas a serem adotadas para estreitar o alinhamento com seus instrumentos legais.
Cabe salientar que o país já se submeteu anteriormente a revisões feitas pela OCDE. Aponta-se, por exemplo, a recente revisão da política de governança digital concluída no segundo semestre de 2018 e liderada, no Brasil, pelo então Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, com a participação da Casa Civil e da Enap. Desse modo, a revisão que se inicia em 2020, dentro da temática de empresas e direitos humanos, será uma grande oportunidade de alinhamento do Brasil com os instrumentos da OCDE, o que certamente contribuirá para a sua tão desejada acessão.
A pauta de direitos humanos, embora sujeita a inúmeras suspeições e críticas, muitas delas justas em razão do que já se disse anteriormente, precisa ser desencarcerada das polarizações ideológicas e cumprir o seu papel ontológico, pois só assim contribuirá para o alcance do primeiro objetivo fundamental da República Federativa do Brasil, previsto no artigo 3.o da Constituição Federal, que é construir uma sociedade livre, justa e solidária. Nesse sentido, o momento atual é muito importante para o nosso país, pois a imprescindível adequação das políticas nacionais aos instrumentos da OCDE não só contribuirá para que possamos nos tornar membros dessa importante instituição internacional, mas também servirá para que os atores governamentais e a sociedade civil concluam que o desenvolvimento econômico que todos nós almejamos pode e deve ocorrer lado a lado com uma necessária sustentabilidade social e ambiental. Desta forma, o Brasil pode se tornar modelo para o mundo, além de motivo de orgulho perene para o seu próprio povo.
Resta claro que não há nenhuma incoerência entre o ingresso na OCDE e a observância de direitos humanos que sejam caracterizados pela universalidade, objetividade e não seletividade. Assim, que o caminho de acesso, por mais difícil que seja, nos dê a oportunidade de renovar a pauta dos direitos humanos como um bem para todos e não apenas para alguns. Afinal, a verdadeira pauta de direitos humanos, que foi construída após as terríveis violações ocorridas nas duas grandes guerras mundiais, não pertence aos partidos, pertence aos humanos.
Sérgio Augusto de Queiroz, procurador da Fazenda Nacional, é secretário nacional de Proteção Global do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos e membro do Ponto de Contato Nacional da OCDE no Brasil.
Texto extraído da Gazeta do Povo
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