Fernanda, a alma do país
Por Cacá Diegues
‘Foram anos duros, mas foram os melhores anos de nossas vidas”. Essa citação de Bertolt Brecht está em “Prólogo, ato, epílogo”, editado pela Companhia das Letras, livro de memórias de Arlette Pinheiro, a atriz que melhor conhecemos pelo pseudônimo que adotou como profissional e que assina a obra, Fernanda Montenegro. A melhor atriz brasileira de todos os tempos, síntese de uma cultura nacional que se exprime por uma dramaturgia específica que só nós sabemos e podemos expressar.
Os “melhores anos de nossas vidas”, a que Fernanda se refere citando Brecht, são exatamente seus anos tão criativos, expostos ao desinteresse ou à ignorância repressora do Estado. Os anos em que aprendemos a admirá-la e segui-la, não apenas como a grande estrela que ela sempre foi, desde o iniciozinho de sua carreira ao microfone da Rádio MEC, mas também como uma estrela-guia de nossos passos em relação ao futuro do Brasil.
Fernanda Montenegro não é apenas a excepcional atriz de rádio, teatro, cinema e televisão, hoje reconhecida em todo o mundo. Ela é também um exemplo superior de intelectual brasileira, pensando sobre o que nós somos. Tudo o que ela faz ou diz, provavelmente tudo o que ela pensa, está sempre dedicado a reconhecer de onde viemos como nação e para onde devemos ir. Mas não como uma opção aleatória, uma alternativa sem discussão, a gosto do freguês. Ao contrário, como nossos grandes pensadores do século XX, os inventores do Brasil moderno, Fernanda quer descobrir o que somos e o que poderíamos ser, para poder nos reinventar.
Não foi por acaso que ela passou por movimentos culturais decisivos, desde o começo de sua carreira profissional. Como o Teatro Brasileiro de Comédia, a dramaturgia criada pela televisão que então engatinhava e o próprio Cinema Novo. Em cada um desses momentos de nossa história cultural, e em outros que se seguiram a esses, ela esteve sempre presente, colaborando com sua luz a serviço do que estava acontecendo e por acontecer. Não somente a luz imóvel dos refletores que a põem em destaque no palco; mas sobretudo a luz inquieta e explosiva de uma estrela no céu, em permanente estado de risco.
Não me lembro se, na época, cheguei a falar sobre isso com Fernanda, mas sempre fui contra sua migração para a burocracia da gestão cultural do Estado. Durante o governo de José Sarney, o primeiro presidente civil depois da ditadura iniciada em 1964, ela foi convidada a assumir o recém-criado Ministério da Cultura, o MinC, que não existe mais. Uma enorme onda de apoio cobriu seu nome, com incentivos que vinham dos políticos, como vinham também e principalmente da própria comunidade de artistas e produtores de cultura. Contra o desejo da imensa maioria, torci para que ela não aceitasse sua indicação. Como Glauber Rocha, Ferreira Gullar, Gilberto Gil e outros artistas tão importantes e competentes quanto esses, na época e depois da época, na minha opinião ela tinha que ficar sempre do lado de cá, sem compromissos que a domassem e impedissem sua manifestação iluminada. Nós precisávamos mais de seu talento, inteligência, independência e liberdade do que de sua gestão cultural.
E aí está Fernanda Montenegro, a nos reiterar sua pregação de qualidade na criação artística, de democracia e justiça, de liberdade e igualdade sem prejuízo dos outros. E, em torno desses valores, ela busca construir o que esperamos de nossa produção cultural, sem a qual país algum do mundo será respeitado e sobreviverá como nação. Porque, mesmo que ignorada ou combatida pelos dirigentes do país, é a cultura que alimenta e produz a alma de uma nação. Ela só existe na medida em que puder refletir o que é seu povo, enquanto inventor de ideias e de comportamentos. Fernanda é uma de nossas heroínas nesse processo mal compreendido, tão longo e difícil. Mas alcançável.
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