Vamos falar francamente: só os Estados Unidos têm capacidade de intervenção no conflito do Oriente Médio. Deve-se ao presidente Biden — com sua arriscada viagem a Tel Aviv — o único movimento, digamos, no sentido da redução de danos: obter a concordância de Israel e do Egito na abertura do corredor para levar comida, água e remédios para a sofrida população de Gaza.
E o Brasil?
Ia escrever capacidade zero. Mas perto de zero é mais adequado. Por um motivo: as boas relações de Lula e de Celso Amorim, seu assessor especial, com lideranças palestinas, incluindo, muito especialmente, o Hamas. E com o Irã, patrocinador dos terroristas do Hamas e do Hezbollah. Tratamos desse tema na coluna da semana passada. Voltamos para acrescentar novos dados.
Em março deste ano, Amorim assinou o prefácio da edição em português do livro “Engajando o mundo: a construção da política externa do Hamas”. O autor, Daud Abdullah, que esteve no Brasil para o lançamento, vive na Inglaterra. Já foi processado sob acusação de incitar ataques terroristas.
Em seu prefácio, Amorim declara ter ficado “encorajado” com estas palavras do autor: “O Hamas pode representar um papel central na restauração dos direitos palestinos”. Isso, acrescenta o embaixador brasileiro, “através de maiores esforços diplomáticos e alianças globais”.
Como percepção geopolítica, trata-se de um equívoco monumental. Esforços diplomáticos de um grupo cujo objetivo formal, escrito em estatutos, é destruir Israel e assassinar judeus? Como um diplomata experiente pode equivocar-se tanto?
A menos que não seja análise, mas propaganda. O autor Abdullah certamente é propagandista do Hamas. Amorim, de sua parte, acentua as relações históricas de Lula com o movimento palestino. O que é verdade. Tanto que, nos primeiros dias depois do ataque do Hamas, Lula e Amorim evitaram qualificar o caso como terrorismo.
Pois não seria este o momento de usar essas relações? Se o objetivo for evitar a escalada, há um movimento essencial que depende do Hamas: a libertação dos reféns presos em Gaza, entre os quais há muitos civis não israelenses, inclusive, possivelmente, brasileiros.
Há uma pressão global para que Israel cesse os bombardeios em Gaza e desista do ataque por terra. Não fará isso unilateralmente. A pressão interna sobre o governo israelense não permite. Uma troca pelos reféns pode levar pelo menos a uma parada temporária na guerra, abrindo espaço à diplomacia.
Lula tem acesso direto ao presidente do Irã, Ebrahim Raisi, aliás recentemente admitido como integrante do Brics. O Irã financia e lidera o Hamas. Amorim certamente tem como chegar a lideranças palestinas ligadas ao Hamas. Por que o governo brasileiro não se engaja nessa direção?
Toda a movimentação diplomática do governo brasileiro simplesmente não deu em nada até agora. E não dará. Todo mundo sabia que a resolução apresentada no Conselho de Segurança da ONU seria derrubada pelos Estados Unidos, que pretendem manter abertas todas as suas opções de negociação e intervenção. Os 12 países que votaram pela resolução o fizeram para marcar posição interna ou em relação aos Estados Unidos (como a China). E votaram sabendo que a proposta brasileira cairia.
Retirar os brasileiros de Israel foi simples. Não houve qualquer obstáculo de Israel, ao contrário. Mas e os reféns que estão em Gaza?
O Hamas quer apoio — como o apoio incondicional que recebe de esquerdas internacionais, cuja manifestação em Nova York pedia um só Estado Palestino, “do rio (Jordão) ao mar”. Ou seja, varrendo Israel do mapa. Esquerdas brasileiras, incluindo partes do PT, embarcaram nessa. Mas Lula teve de chamar o terrorismo do Hamas de terrorismo, por pressão local e internacional.
Ora, isso elimina a capacidade de fala com o Irã e o Hamas. Como o governo brasileiro não tem abertura para o outro lado, acabou qualquer possibilidade de intervenção no conflito.
Para falar a verdade, o governo deveria aplicar todo o seu tempo, sua energia e seu dinheiro nos graves problemas internos: a seca no Amazonas, chuvas no Sul, o desastre da segurança especialmente na Bahia e no Rio. Mas isso é mais difícil, né?
O Globo
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